sexta-feira, 16 de maio de 2008

Ponto 5




PATO ÀS AVESSAS ou MAIS UMA VARIAÇÃO MAÇANTE SOBRE O MESMO TEMA



Fora despertado de sua apatia papal, na rodoviária, rumo à sua Rimini – um casal de namorados, lindos & louros & felizes, ao seu lado, beijava-se. E seus beijinhos, acompanhados de pequenas risadas, o estalo dos lábios, a gosma da saliva, tudo aquilo junto produzia um som que em seu ouvido traduzia-se em Unha em Quadro Negro, Atrito de Isopor, Então é Natal da Simone.
Olhou para o horizonte, suspirou. Tentou tragar o que restava de seu cigarro (que a essa hora já era uma gigante cinza a milésimos da queda); pensou: Doriana; balbuciou: Fodam-se bando de filhos da puta malditos tomar no cu caralho porra.
Quase simultaneamente, sua atenção é desviada pela voz de um guardador de bagagens, entediado, falando com um motorista, hiperativo; o primeiro reclamando de ficar, o último de partir, mais uma vez. Uma voz imaginária o assombra: “Next stop, Connecticut. Next stop, Connecticut.” Ou algo assim. Um filme. Uma peça. Um seriado. Um filme. Truffaut. Godard. Zé do Caixão. (...) “Next stop, Connecticut” – Tempestade de Gelo, a primeira cena. Filme, Ang Lee, Tobey Maguire, 70’s, frio.
Frio.
Seu cérebro torna-se a partir disso um caleidoscópio, alguns pensamentos-estilhaços se movimentando, sem criar uma imagem definida, necessariamente: 1 – esqueci o casaco pra viagem; 2 – mas por que isso? por que Tempestade de Gelo?; 3 – que horas serão?; 4 – quando, meu deus? quando?
Esforça-se um ou dois segundos para Refletir Sobre. Entendia-se. Acende novo cigarro.
Sua atenção volta-se novamente para o casal a seu lado. Novos beijinhos, 800 decibéis de saliviana felicidade. Ela – Bünchen, Catherine Deneuve – dá seu beijo de despedida e parte. Ele – Belmondo, Assunção – sorri e acena, levemente feliz & embargado (Argh!). Ele – Ele mesmo, nesse momento meio Tobey Maguire voltando pra sua New Canaan – fica.
Pensa em voz baixa: Why lord, why? (em inglês mesmo). Era inevitável. Mais uma vez teria que se defrontar com seus fracassos amorosos e sucessivos abandonos. Fantasmas inertes em sua mente. Tenta contar quantas vezes fora abandonado no outono, às portas do inverno – mesmo que esse abandono implicasse nele próprio terminando um relacionamento. Tinha consigo que, mesmo quando terminava, ele era o abandonado. (Sim, ele tinha consciência da autocomiseração desse conceito).
Perde a conta.
Um dado novo que nunca percebera antes (análises acadêmicas eram seu forte): além da questão Outono às Portas do Inverno, mais uma similaridade entre os casos: sempre fora abandonado (segundo aquele seu conceito), nas piores ocasiões. Parecia que seus amantes-algozes tinham um fino faro para sempre descobrir O Pior Momento.
Sem trabalho e doente? “Temos que ter uma conversa”; sozinho em uma nova cidade? “O problema não é com você”; funeral de sua mãe? “Acho que não dá mais”; a um dia do resultado da biópsia?; “Acho que a distância, a profissão, os signos, os ascendentes nos separam”. Cataclismas? Quedas da bolsa? Tsunames? Fim, fim, fim. Era sempre isso: fim. Sua vida era um eterno final, mezzo terrível mezzo patético, sempre a alguns dias do inverno. Sempre sem direito a letreiros descendo, Philip Glass ao fundo, nada. Seco. Se filme, mais Tempestade de Gelo de Ang Lee, mesmo.
Pensou: fodam-se todas e tod... Mas mal teve tempo de concluir, pois percebe a última chamada. Next stop, Rimini.
Dentro do ônibus, recebe informações sobre o ar-condicionado a 20 e tantos graus celsius durante a viagem. Sabia que era mentira. Já penara algumas madrugadas naquele mesmo ônibus, naquele mesmo trajeto, a 16, 17 graus: E eu sem casaco, meu deus!
Acomoda-se. Olha o entorno. Abre e fecha a cortina da janela, ver ou não ver a estrada. Não chega a um consenso, o pragmatismo nunca fora seu forte.
O ônibus parte, as imagens em sua mente continuam. Tempestade de Gelo, frio, cidade natal, outono/inverno, relacionamentos amorosos fracassados.
Pensa na palavra “oco” e treme. Ele não era oco. Não era. Nunca fora. Rezava para não ser. Queria não enfrentar o fato de que, em última instância, forjara sua vida, desde a mais tenra idade, por uma fortificação que igualmente o protegia e o afastava do mundo. Sua Rimini, o apreço pelo frio, suas andanças. Características que o constituíam e o matavam.
Por que não podia ser mais simples?
Por que não dera certo com ninguém?
Por quê?
(...)
Envelhecer sozinho.
Envelhecer sozinho.
Envelhecer sozinho.
Frio.
(...)
Seus pensamentos tornam-se levemente embaçados. Pensa: Morfeus.
De repente, toda essa confusão angustiante começa a se dissipar, a ficar pelos quilômetros das ruas, avenidas e estradas já percorridas.
De repente, o casal da rodoviária é só um lampejo de memória. Nem tão lindos, nem tão louros, nem tão felizes.
De repente Tempestade de Gelo é só um filme, não sua vida.
Lembra-se, então, de algumas pintas que foram e sempre serão suas: uma, perto de um sexo; outra, em uma nuca. Lembra de uma marca de nascença em um nariz que pra sempre será seu. Recorda madrugadas em rodovias interestaduais, sempre rumo ao sul. O sul. Pensa em alguns verões felizes. Em conchas e conchinhas. Em almoços de domingo. Na massa polar que o persegue nos meses de maio. Em cabelos que caem e tecidos adiposos que aumentam.
Mas tudo isso nesse momento é confortável.
A segundos de dormir, esboça um sorriso: o ônibus acaba de entrar na Dutra, seu para sempre inevitável destino.
Percebe-se, então, pronto pra mais uma temporada de inverno.



(MAIO DE 2008)


18 comentários:

DDA Silveira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
DDA Silveira disse...

Que overdose de sentimentos-imagem!
Adorei!
Embora permaneça triste oa pensar o quanto tem o texto, de autobiográfico. Rs
Mas o que me conforta é pensar que jamais estaremos tão sós e desesperados se soubermos ainda brincar com as palavras, tê-las na mãos...e depois deixá-las irem embora para algum blog ou semelhante. :P
Dividir a palavra além de doar é ter o leitor ou ouvinte perto do coração. Eu acho.
Saudades.
Amo
:)

DDA

Unknown disse...

palavras torridas de tanto frio.imagens cristalinas em alta definição em tela de plasma...rs.Incrível!
Adorable!
B.

Tato Consorti disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Tato Consorti disse...

Por mais maluco que pareça, Dedinha... Acho esse o menos autobiográfico de todos... Rs.
Mas juro!
Adoro seus comentários hoje-e-pra-sempre.
Beijão e brigadão por mais uma visita.

Landi disse...

Lindo. Frio. Poético.
Divisor.Soco no estômago.Daqueles que doem, mas é uma dor que é confortável, que fundo acalanta.

Tato Consorti disse...

Brigadim pela visita & pelo comentário, irmão!
Beijos.

Mr. G disse...

outch!!!! amei sua porção escritor do ponto 0 ao 5... meio disconfortável p mim, adoro a desconexão das frases construindo um todo!!! parabéns!!!

Alan Dantas disse...

"balbuciou: Fodam-se bando de filhos da puta malditos tomar no cu caralho porra."

As vezes penso o quão isso pode se tornar libertador, mas tambem o quão faz prender alguem a determinada situação...

Achei super interessante a gradação negativa que esse texto tem, de diminutivo,desaparecimento, imaginariamente dizendo... pensa-se coisas grandes, irritantes, confusões, explosões de imagens... em seguida tudo parece estar simplesmente acalmando-se com a tristeza do "personagem",o proprio sentido do frio mesmo... e no final, tudo apaga-se, como a visão do personagem ao cair no sono...

oooh Lord, és um ótimo escritor ;D
Um Abraço, Professor!

DDA Silveira disse...

O relógio corre cada vez mais rápido.
E enquanto pele e alma envelhecem
A mulher abre-se cada vez mais pra dentro
E cada vez mais muda,
Nada entende sobre correr.

A cidade é cada vez mais barulhenta e cinza.
E enquanto os coloristas iluminam seus mundos poraí
A mulher permanece cada vez mais dura.
Ladeada de sua sepultura:
Cafés e cigarros ruins.

O retrato de superfície torta já está amarelando.
E enquanto imagem e papel se desgastam pela vida
A mulher para sempre esquecida
Nada sabe sobre viver. "

DDA

Tato Consorti disse...

Belíssimo, Deda.
Orgulho e prazer de tê-la aqui, sempre (& novamente).

Paulo Salvetti disse...

Que bela seqüência de intensidades pulsantes você criou por seus pontos. Pontos vistos de cima, mas que quando se dá conta tranformam-se em pontos punhais, que se afundam como estaca, adentrando-se pela intimidade. Adorei.
Bjs

Unknown disse...

Tatito vamos atualizar o blog?
Hahahah como prometido eu entro sempre aqui mas, vc ainda não postou nada novo =/

To esperando

Beijão
Vítor M.

Mônica Paschoal disse...

Não pare de escrever.

DDA Silveira disse...

Tatito. Também ressucitei meu blog. Ainda não tem nada demais...mas adoraria vê-lo por lá!
Beijocas amore!
DDA

http://www.dda-dda.blogger.com

DDA Silveira disse...

Nunca mais rabiscou aqui...:(

Anônimo disse...

nossa amei é meio tristeza desolador mas com tudo é verdadeiro

anareis disse...

Querida(o) nova(o) amiga(o),estou precisanda muito de novos amigos pra me auxiliarem no meu projeto. Estou criando uma minibiblioteca comunitária e outras atividades pra crianças e adolescentes na minha comunidade carente aqui na minha comunidade carente no Rio de Janeiro,eu sózinha não conseguirei,mas com a ajuda dos amigos sim. Já comprei 120 livros e também ganhei livros até de portugal dos meus amigos dos meus blogs que eu tenho no google: Eulucinha.blogspot.com ,se quiser pode visitar meus blogs do google,ficarei muito contente. A campanha de doações que estou fazendo pode doar qualquer quantia no Banco do Brasil agencia 3082-1 conta 9.799-3 ou pode doar livros ou pode doar máquina de costura ou pode doar retalhos,ou pode dor computador usado. Qualquer tipo de doação será bemvinda é só mandar-me um email para: asilvareis10@gmail.com , eu darei o endereço de remessa. As doações em dinheiro serão destinadas a compra de livros,material de construção,estantes,mesas,cadeiras,alimentos,etc. Se voce puder arrecadar doações para doar ao meu projeto serei eternamente grata. Muito obrigado pela sua atenção.